Uma folha amarelada desprende da árvore que a sustentava, que lhe alimentou e sintetizou o necessário para sua existência, amadurecimento, e agora, a despacha da família sem muito se explicar, sem muito expressar, apenas a libera a seu destino. Existiria amor nesse gesto? Nesse desapego, quem somos nós para julgar a forma que a árvore educa suas folhas a serem? A brisa suave do outono a carrega com uma carícia e sentimento efêmero, paira no ar por alguns instantes que significam muito em questão de carinho para ela, a folha desapegada.
Esta folha voou alguns metros, até cair sobre o colo de um menino, mas sua fragilidade ao mundo era tanta, estava tão doente; semimorta, que quando ele a tocou, ela se quebrou e fez-se em farelos de vida, se desfez numa despedida singela de vida, amarelada, despercebida. Sentado em um banco gasto, Marcos estava tomando um ar e tentando por sua cabeça no lugar, acabara de discutir seriamente com sua família, e não conseguia ver algum destino bom para essa história. Com os restos mortais da folha no colo, ele aprecia a mansão da família, que ficava na praça. Para que possa compreender, existe um quarteirão onde foi construída uma praça linda, mas a mansão da família toma metade do quarteirão. Os muros erguidos fazem com que pareça uma prisão domiciliar, mas as pilastras que sustentam a entrada abaulada em forma de U, toda esculpida, e o salão de entrada sempre decorado, fazem-se com que pense que ali vivem reis e rainhas. Talvez não estejamos errados, talvez os moradores sintam-se assim.
Marcos estava em choque, não sabia exatamente como proceder com essa ruptura familiar, nem como convencer seus pais de que ele era uma boa pessoa. Não estava com cabeça para nada, apenas para prestar atenção no simples e no vazio. Viu os pássaros cantando, e sentiu-se cantando também; mas viu a imensidão do céu, aquele azul sem fim, e sentiu o buraco não azul, mas cinza que havia criado dentro de si, tão imenso e quase tão indecifrável quanto o céu. Mas alguma maneira teria que existir para mudar isso. Sentia-se tão incompreendido quanto o céu, tão semimorto quanto a folha amarelada. Dormiu aos soluços de choro. No banco duro e desconfortável fez sua cama, do céu o seu lençol, do farfalhar das árvores sua cantiga de ninar.
Tudo estava numa cor vermelha, quando percebeu que era o sol penetrando em suas pupilas, já as havia aberto, o sol estava exatamente sobre sua cabeça, e a diferença de cor o deixou desnorteado por alguns segundos, uma mistura de cores invadiu sua retina, mas logo se acostumaram. Suas costas estralaram, afinal, para quem sempre dormiu em uma cama quentinha e aconchegante, existe uma diferença notável quando se dorme em um banco de praça. Sua cabeça doía, seus olhos estavam inchados de tanto chorar, havia dores por todos os cantos do seu corpo. A vida real havia retornado. Não estava de ressaca alcoólica, estava de ressaca moral, aquela sensação de quando se lembra de pensamentos da noite anterior, que faziam total sentido, mas que agora, não passam de chacota do chicote da sua alma. Ele precisava achar alguma coisa para fazer: ou voltava para casa, ou conseguia algum bico.
Voltar para casa.
Caminhando tortuosamente pelas ruas, quarenta minutos de caminhada à frente essas pernas fracas enfrentariam. Morro a cima, morro a baixo. Sua família não poderia o expurgar assim, ele os amava, sempre os amou. Porque isso? Seu coração era ingênuo demais para o mundo de hoje. Marcos é capaz de acreditar em um mundo justo e igual, racional, um mundo bom para todos. Pensamento esse, que deveria ser preservado, vai ser massacrado pelo mundo.
Já estava dentro da favela, na grande São Paulo, onde morava. A casa de cimento batido, muitas coisas a terminar, uma porta de metal cinza fechada. O punho cerrado. Toc Toc Toc.
Silêncio...
Marcos tentou de novo, bateu a porta. Passaram-se mais dois minutos, e ele já estava desistindo. De repente, ele ouviu o barulho de talheres sendo colocados no prato, provavelmente para atender a porta. Ele estava certo. O rangido da porta se abrindo. Era seu pai, e a expressão foi terrível ao ver o filho. Existia nojo no olhar, a mesma expressão ao vermos alguém coçar a genitália na rua, por dentro da roupa, e depois vir cumprimentá-lo. Não, a expressão no rosto do pai era pior. Como se estivesse comendo merda. Sim, essa seria a melhor colocação.
- Eu te avisei que não voltasse aqui, nunca mais! – O homem, que terminava de mastigar seu almoço, saiu de trás da porta e avançou no garoto, o pegou pelo colarinho, e desferiu um soco no rosto. – Se voltar aqui, juro que o mato! Juro!
A dor que sentiu, não foi a dor de um soco, ela foi preenchida pela adrenalina, a dor que conseguiu sentir na hora foi pior do que o golpe que fez sua boca sangrar, foi o golpe que fez sangrar seu coração. O próprio pai...
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